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Coração e Covid-19: quando é seguro para o atleta voltar ao esporte?

Quem acompanhou o imbróglio que antecedeu o confronto entre Palmeiras e Flamengo, no dia 27 de setembro, pelo Campeonato Brasileiro de futebol – partida que ameaçou ser adiada pela Justiça, por causa do grande número de casos de Covid-19 entre jogadores e membros da comissão técnica da equipe carioca –, talvez não imaginasse que, em muito pouco tempo, vários dos atletas afastados estariam em campo novamente. Alguns, inclusive, com ótima performance.
Apenas três dias depois, Bruno Henrique, por exemplo, foi um dos destaques do Flamengo na partida contra o Independiente Del Valle, do Equador, pela Libertadores da América. O atacante, que marcou dois dos quatro gols da vitória rubro-negra, teve o diagnóstico de Covid-19 em 20 de setembro, na mesma semana em que mais de uma dezena de companheiros de time também testaram positivo para o novo coronavírus (Sars-Cov-2). Mas quase todos já estavam à disposição do treinador Domènec Torrent para o jogo contra o Athletico Paranaense, em 4 de outubro.
Os jogadores foram relacionados para a partida porque, de acordo com o protocolo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), atletas assintomáticos, 10 dias depois do diagnóstico, não são capazes de transmitir o vírus. A regra, que tem como base diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, permite o retorno aos gramados mesmo com um teste PCR positivo, desde que não haja sintomas após o período de isolamento.
No entanto, para além da contaminação a terceiros, um retorno tão rápido às competições, sem um período maior de recuperação e treinamento, pode representar risco para a saúde do atleta. É o que afirmam médicos e associações da classe, que apontam complicações cardiovasculares como as principais preocupações.

Risco de miocardite

No artigo Esporte em Tempos de Covid-19: Alerta ao Coração, publicado como editorial na mais recente edição da revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC Cardiol), um grupo de médicos ressalta que uma das características da Covid-19 é o possível acometimento cardíaco, visto em até 22% dos pacientes hospitalizados. A taxa de mortalidade pela doença é até 4,5 vezes maior em cardiopatas, destaca o texto, lembrando também que doenças cardiovasculares são a terceira maior causa de morte associada ao novo coronavírus, após complicações respiratórias e sepse.
Ainda de acordo com o artigo, devido às diferentes manifestações da Covid-19 – que vão desde a forma assintomática até a grave, com hospitalização –, a apresentação clínica do atleta, durante sua avaliação para retorno ao treinamento ou à competição, pode ser frustrada, já que não se levanta suspeita quanto ao acometimento cardiovascular.

“Há grande preocupação quanto à ocorrência de miocardite nos atletas expostos, pois, sem adequada avaliação cardiológica especializada, podem ser submetidos, durante a fase subaguda ou crônica da doença, a volume e intensidade de exercício capazes de desencadear arritmias malignas durante ou mesmo após o esforço”, alertam os autores do texto, liderados pelo cardiologista Marcos Perillo Filho, fellow de Cardiologia do Esporte no Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo.

A miocardite é uma inflamação do tecido muscular do coração que leva a um quadro de arritmia. Para o atleta, as consequências da doença – que é mais frequentemente relacionada à prática de exercícios após um quadro viral – podem ir desde um mal-estar em campo à morte súbita durante o jogo. Estima-se que de 7% a 20% desses óbitos, em atletas jovens, sejam devido à miocardite.

Responsabilidade dos clubes

Pesquisas corroboram a preocupação dos médicos brasileiros. Dados de uma análise de 150 pacientes de Wuhan, na China, onde começou a pandemia de Covid-19, indicam uma provável incidência de 7% de miocardite em pessoas infectadas pelo novo coronavírus.
Já nos Estados Unidos, um estudo da Universidade de Ohio, publicado em setembro no periódico Jama Cardiology, apontou evidências de miocardite em 15% dos 26 investigados que tiveram Covid-19. Os pesquisadores também encontraram até 30% de danos celulares e inchaço no coração dos pacientes, mas essas ocorrências não puderam ser relacionadas diretamente à doença.
No entanto, é da Alemanha que vem o índice mais alarmante. Em uma investigação com 100 pacientes de Covid-19, descobriu-se que 60% desenvolveram miocardite, independentemente das condições preexistentes.
Para os autores do artigo publicado na ABC Cardiol, retomar o esporte sem avaliação do sistema cardiovascular do atleta acometido pela Covid-19 “parece imprudente”, já que o expõe ao risco de morte súbita.

“Ainda não há dados conclusivos quanto à segurança da prática esportiva de alto rendimento nesta população específica, pois, ao serem expostos a esforço intenso, [os atletas] podem apresentar efeitos adversos de eventual lesão miocárdica. Eventos cardíacos podem ocorrer durante partidas, treinos ou mesmo em repouso, o que acarreta grande responsabilidade aos clubes e organizações esportivas, que devem resguardar a si e aos seus integrantes, promovendo adequado rastreio de sequelas cardíacas, principalmente a miocardite”, salienta o texto.

O grupo médico liderado pelo Dr. Perillo Filho afirma, ainda, que somente é considerado elegível para retomada imediata das atividades o atleta sem evidência de contato com o Sars-Cov-2, com os exames RT-PCR, IgM e IgG negativos.
“Ainda é desconhecido se atletas com anticorpos IgG positivo, considerados imunes, poderiam ou não ser fonte de transmissão do vírus ao seus contactantes e até quando a janela de excreção deste vírus duraria. Logo, um período mínimo de 14 dias de isolamento após infecção confirmada se faz necessário, sendo prudente a avaliação para retorno das atividades esportivas somente após 7 dias assintomáticos”, acrescentam os autores.

Exames necessários

Em posicionamento publicado em maio, o Departamento de Ergometria, Exercício, Cardiologia Nuclear e Reabilitação Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia (DERC/SBC) estabelece como obrigatória, em atletas que foram acometidos pela Covid-19, a realização de avaliação pré-participação (APP).
Essa análise deve incluir eletrocardiograma (ECG) e demais exames complementares, de acordo com a avaliação médica inicial. Sempre que possível, acrescenta o DERC, os testes devem ser comparados com exames anteriores, a fim de rastrear achados pós-infecciosos persistentes ou novos.
Quanto aos atletas que apresentaram alterações em exames cardiológicos, a recomendação é um retorno gradual e com acompanhamento médico, a partir da análise de imagens cardíacas em série.
Já para o Dr. Perillo Filho e seus colegas, na suspeita de miocardite, deve ser usada ressonância magnética cardíaca (RMC), “para melhor acurácia diagnóstica, estratificação de risco e seguimento”. O exame, segundo o grupo, permite uma melhor avaliação da função ventricular e é capaz de caracterizar o tecido cardíaco, detectando a presença de edema e fibrose.

“Por este método, deve-se atentar para além da presença de realce tardio, associada à probabilidade duas vezes maior de eventos cardíacos maiores, sua localização, distribuição e padrão”, detalham os médicos.

Ainda de acordo com os autores do artigo, indivíduos diagnosticados com miocardite devem ficar afastados do esporte entre três e seis meses, no mínimo.
“Mesmo após a recuperação, sequelas pró-arrítmicas podem ameaçar o atleta, e a avaliação sistematizada é crucial para a adequada estratificação de risco, evitando não somente desfechos adversos, como também período desnecessário de afastamento e consequente queda de rendimento e habilidade”, acrescentam.
O quadro abaixo sistematiza a proposta de avaliação cardiológica para o retorno de atletas às atividades esportivas.
Covid-19: avaliação cardiológica proposta para o retorno das atividades esportivas

O que dizem os especialistas

Presidente do Grupo de Estudos de Reabilitação Cardiopulmonar e Metabólica do DERC, o cardiologista, médico do esporte e professor do Instituto HZM Carlos Hossri comenta que a ausência adequada de níveis de evidência torna polêmicas medidas como a liberação, pelos clubes, do jogador de futebol infectado pelo novo coronavírus após 10 dias, caso esteja assintomático.

“Tal conduta, no meu entendimento, é baseada apenas em critério clínico, o que, de fato, é fundamental. No entanto, a maioria dos indivíduos [que tiveram Covid-19] apresenta redução significativa da performance física, e muitos podem ter complicações vasculares até três meses após a infecção. Assim, exames complementares de imagem e função, como ecocardiograma, tomografia de tórax e teste cardiopulmonar, teriam melhores condições de balizar o retorno de profissionais do esporte de alto rendimento”, opina o médico, que também é coordenador acadêmico da pós-graduação em Medicina do Exercício e do Esporte do Instituto HZM.

Para a também cardiologista e médica do esporte Carla Tavares, o tempo fora dos treinos e das competições é apenas um dos fatores a serem considerados em caso de infecção pelo Sars-Cov-2. Professora do Instituto HZM e coordenadora do Departamento Médico do Minas Tênis Clube (MTC), Dra. Tavares ressalta que é importante estar atento ao quadro do atleta.
“Dependendo do tipo de sintoma, é preciso realizar uma nova avaliação cardiológica antes do retorno, incluindo ECG e marcadores cardíacos, como a troponina. Também pode ser necessário fazer ecocardiograma e ressonância magnética”, afirma a médica, complementando que o protocolo seguido pelo MTC é similar ao proposto no artigo da ABC Cardiol.

“Nós avaliamos a gravidade de cada caso: se o atleta testou positivo, mas foi assintomático, ou se teve um quadro mais importante. Isso vai definir os próximos passos”, conta.

Decisão compartilhada

Consultor médico do Flamengo, o cardiologista Fernando Bassan explica que, na Covid-19, a taxa de mortalidade é 10 vezes maior em indivíduos com a troponina positiva. Embora a equipe rubro-negra tenha seguido o protocolo da CBF no retorno dos jogadores recuperados da doença, Dr. Bassan recomenda que uma pessoa infectada pelo novo coronavírus se afaste de atividades físicas intensas por, no mínimo, duas semanas.

“É fato que de 10% a 30% de quem tem Covid-19 pode desenvolver alguma injúria no coração. Praticar futebol ou algum esporte antes das duas semanas é um risco que se assume, pois não sabemos ainda o impacto”, diz o médico, que é membro da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro (Socerj), em entrevista ao jornal O Globo.

O veículo carioca lembra o caso de Fred, centroavante do Fluminense que também teve Covid-19. No entanto, diferentemente do rival Bruno Henrique, o artilheiro tricolor não jogou bem em sua primeira partida após a quarentena, no dia 28 de setembro, contra o Coritiba. Após 60 minutos em campo, pediu para ser substituído e, ao sair do gramado, reclamou com repórteres: “Covid é fogo”.
Para o fisiologista Cláudio Pavanelli, ex-profissional do Flamengo e hoje no esporte universitário americano, a Covid-19 pode, sim, prejudicar o desempenho do atleta.
“O movimento, seja em alta ou baixa intensidade, exige respiração. Então, é claro que isso pode interferir em performance”, argumenta, em outra reportagem de O Globo.
Na mesma matéria, o fisiologista e médico do esporte Cláudio Gil defende que o pós-Covid seja tratado como uma decisão compartilhada.

“Ela passa pelo especialista, pelo clube, pelo próprio jogador, pela família e até pelos patrocinadores. E a data da volta precisa ser discutida sem dogmas. Cada caso tem o seu tempo adequado”, acredita.

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