Se a temporada 2021 fosse uma partida, o futebol brasileiro teria descido para o vestiário sem saber se retorna para o segundo tempo. Com o agravamento da pandemia de Covid-19, os dois principais campeonatos estaduais do país seguem repletos de incertezas.
No Rio de Janeiro, os quatro maiores clubes têm mandado seus jogos na Baixada Fluminense ou em cidades do interior do estado, uma vez que competições esportivas na capital estão proibidas. Já em São Paulo, o veto atinge todo o estado, o que fez a Federação Paulista de Futebol (FPF), num primeiro momento, levar duas partidas para Volta Redonda (RJ).
Mas agora o Paulistão está suspenso, pelo menos, até 11 de abril, quando deve terminar a fase emergencial do Plano São Paulo, proposto para conter a expansão do contágio pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2) e reduzir a procura pelos hospitais. Para que o campeonato acabe em 23 de maio, conforme prevê o calendário, os clubes podem até mesmo jogar a cada dois dias, nem que seja com times reservas ou aspirantes.
Vale lembrar, ainda, que desde o início da pandemia, em 2020, partidas de futebol no Brasil não têm presença de público.
Números equivalentes a profissionais de saúde
Enquanto a Covid-19 torna o futuro incerto, o passado é motivo de lamento e preocupação. Estudo da Universidade de São Paulo (USP) revela que a incidência de infecção pelo Sars-Cov-2 entre atletas da FPF, durante a temporada 2020, foi de 11,7%. Esse índice, conforme destaca reportagem da Agência Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), é equivalente ao de profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate à pandemia.
Os pesquisadores analisaram quase 30 mil testes de RT-PCR aplicados em 4.269 atletas que disputaram seis torneios masculinos (Taça Paulista, Sub-23, Sub-20 e as três divisões do Campeonato Paulista) e dois femininos (Campeonato Paulista e Sub-17). Também foram avaliados 2.231 testes feitos nas equipes de apoio, formadas por profissionais de saúde, membros de comissões técnicas, dirigentes, roupeiros e outros.
No primeiro grupo, 501 exames (11,73%) confirmaram a presença do Sars-Cov-2. No segundo, 161 (7%) deram positivo para o vírus.
“É uma taxa de ataque bem superior à observada em outros países”, afirma Bruno Gualano, professor da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP) e coordenador da pesquisa, em entrevista à Agência Fapesp.
“Na liga dinamarquesa de futebol, por exemplo, foram quatro resultados positivos entre 748 atletas testados [0,5%]. Na Bundesliga [da Alemanha], foram oito casos entre 1.702 jogadores [0,6%]. Mesmo no Catar, onde há um risco moderado de transmissão comunitária, o número foi menor do que o nosso: 24 positivos entre 549 avaliados [4%]. Comparados aos outros casos de que se tem registro, portanto, nossos jogadores se infectaram entre três e 24 vezes mais”, acrescenta.
E os índices podem ser ainda maiores. Para Gualano e seus colegas, que pesquisaram apenas os dados do laboratório comissionado pela FPF, é possível que os números estejam subestimados.
Igualdade de gêneros
Os dados de São Paulo indicam que o vírus afetou igualmente homens e mulheres. Já na comparação entre os atletas e os membros do estafe, apesar de a taxa de ataque ter sido maior no primeiro grupo, os casos graves foram mais frequentes no segundo, que tem média de idade mais alta e condições de saúde mais heterogêneas.
“Esse é um dado que preocupa. Os poucos casos graves – entre eles um que evoluiu para óbito – foram registrados entre os integrantes do estafe”, observa Gualano.
O pesquisador também ressalta que, embora os atletas tendam a desenvolver sintomas leves ou serem assintomáticos, podem atuar como vetores de transmissão para a comunidade, pois são “indivíduos com uma vida social muito ativa”. Além disso, como a política que prevê o rastreio de contactantes nunca foi implementada no Brasil, não é possível mensurar o impacto das infecções secundárias provocadas pelos jogadores em seus domicílios ou círculos sociais.
Já o Dr. Moisés Cohen, presidente do Comitê Médico da FPF, alerta que os casos de Covid-19 entre jogadores paulistas surgem quando se quebra o protocolo estabelecido pela entidade, que prevê testagem frequente dos atletas e das equipes de apoio, isolamento de infectados, rastreio de contactantes dentro do ambiente esportivo e medidas de higiene.
“É um ambiente controlado, onde os riscos são monitorados e minimizados, dentro do possível, fazendo testes a cada dois ou três dias. Para aqueles que saem [da concentração] e voltam, os testes são diários. Também implementamos rastreamento de contatos em caso de RT-PCR positivo e todos os cuidados de proteção, como EPI [equipamento de proteção individual] e álcool gel”, explica o médico.
Desigualdade social
Gualano confirma que o risco de transmissão do vírus durante as partidas tem se mostrado pequeno. Mas ressalta que outros fatores comprometem a eficácia do protocolo.
“Funcionaria se fosse aplicado na Dinamarca ou na Alemanha. Conta-se muito com o bom senso dos atletas, que são orientados a ir do Centro de Treinamento para casa e a manter o distanciamento social e as medidas não farmacológicas de proteção nas horas de descanso. Mas, aqui no Brasil, uma boa parcela não segue essas regras e não sofre qualquer tipo de punição”, lamenta o pesquisador, lembrando também do grande número de viagens a que os clubes são submetidos.
“Os times menores vão de ônibus, comem em restaurantes e ficam provavelmente mais expostos do que os jogadores de elite. Nossa desigualdade social permeia também o futebol”, compara.
O estudo evidencia que alguns times foram mais afetados que outros. Um deles chegou a registrar 36 casos positivos, dos quais 31 ocorrem em um único mês. Sete equipes tiveram acima de 20 casos confirmados e 19 registraram dez contaminações ou mais.
NBA como modelo
Gualano vê com preocupação a possibilidade de os clubes mandarem partidas do Paulistão em outros estados, como ocorreu nos confrontos entre Mirassol e Corinthians, em 22 de março, e São Bento e Palmeiras, três dias depois. Ambos os jogos foram disputados no estádio Raulino de Oliveira, em Volta Redonda.
“Enquanto a transmissão da Covid-19 não for mitigada, qualquer setor que reabra representa um risco elevado de contágio. A única alternativa segura seria isolar completamente o futebol dentro de uma bolha, como fez a NBA [Associação Nacional de Basquete, dos Estados Unidos], a um custo de US$ 170 milhões. Ou fecha ou isola”, defende o professor da FM-USP.
O estudo liderado por Gualano, ainda em fase de revisão por pares, foi realizado no âmbito da coalizão Esporte-Covid-19, formada por pesquisadores do Hospital das Clínicas (FM-USP), Hospital Israelita Albert Einstein, Hospital do Coração (HCor), Complexo Hospitalar de Niterói, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia e Núcleo de Alto Rendimento Esportivo.
O consórcio, que contou com o apoio da FPF, tem como objetivo acompanhar as possíveis consequências em longo prazo da doença causada pelo novo coronavírus em jogadores de futebol e outros atletas de elite.
“Pior que qualquer 7 x 1”
Em artigo para as Folha de S. Paulo, outra professora da USP, Katia Rubio, mostra pesar pelos efeitos devastadores da Covid-19 no meio esportivo. Rubio, que também é jornalista, psicóloga e autora do livro “Atletas Olímpicos Brasileiros”, cita a incerteza quanto aos Jogos Olímpicos de Tóquio, previstos para julho, e lamenta a internação pelo Sars-Cov-2 da campeã mundial de basquetebol Ruth Roberta de Souza e do judoca tetracampeão paralímpico e campeão mundial Antonio Tenório.
Outro nome lembrado no artigo é do corredor e jornalista Ulisses Laurindo dos Santos, morto em março, aos 91 anos, em decorrência da Covid-19. Ulisses participou dos Jogos de Melbourne, na Austrália, em 1956, e do Pan-Americano de Chicago, nos Estados Unidos, em 1959, quando obteve a quarta colocação nos 400 metros com barreiras.
veja todas as turmas disponíveis“As notícias relacionadas ao esporte em tempos de pandemia não são nada animadoras. Pesquisa publicada essa semana [semana passada] mostra que o futebol paulista bateu recordes internacionais de contaminação. Uma marca para se lamentar, e não celebrar. É um resultado pior que qualquer 7 a 1”, escreve Rubio, em referência à derrota da Seleção Brasileira para a Alemanha na Copa do Mundo de 2014.