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Concussão cerebral no futebol: o que diz a Medicina Esportiva

Um caso de concussão cerebral na Copa do Mundo de futebol masculino chamou novamente a atenção de associações e médicos do esporte para o risco de lesões em disputas de bola pelo alto. Saiba o que a ciência já descobriu e conheça medidas que países vêm adotando para minimizar o problema.

A Copa do Mundo de 2022, no Catar (ou Qatar), é a primeira no Oriente Médio. É também a primeira realizada no final do ano, em vez do tradicional mês de julho, já que o clima desértico e com altas temperaturas do país-sede fica mais ameno nesta época.

Essas, no entanto, não são as únicas novidades da 22ª edição do Mundial, cujo vencedor será conhecido no próximo domingo (18). No campo das regras, a Copa do Mundo do Catar traz uma importante mudança: cada seleção pode fazer não apenas três, mas cinco ou até seis substituições. A sexta será possível caso algum jogador se lesione por pancada (trauma) na cabeça, a chamada concussão cerebral.

A medida mostra a preocupação da Fifa (sigla em francês para Federação Internacional de Futebol Associado) com esse tipo de lesão esportiva. Médicos do esporte e outros profissionais de saúde das 32 nações classificadas para a Copa do Mundo participaram de um seminário, no Catar, para apresentação do novo protocolo de concussão cerebral da entidade máxima do futebol.

A Fifa estabelece que “se houver sinais ou sintomas de lesão cerebral, ou se houver suspeita de lesão concussiva apesar da ausência de sinais ou sintomas, o médico/terapeuta deve retirar o jogador do campo para um exame mais detalhado (usando um substituto, se disponível/necessário)”, de acordo com o site The Athletic.

Riscos da concussão cerebral no futebol

Em nota ao veículo, a Fifa salienta que criou um “protocolo de concussão abrangente, baseado na crença de suspeitar e proteger”, porque “a saúde de todos os envolvidos na Copa do Mundo é uma prioridade”.

“Com base nesse protocolo, a Fifa fornece uma abordagem padronizada para apoiar os médicos da equipe em sua decisão de permitir que um jogador continue na partida ou seja removido após uma lesão na cabeça. Se houver suspeita de lesão contundente em qualquer estágio, a Fifa incentiva todos os médicos da equipe a remover o jogador da partida ou sessão de treinamento e avaliá-lo e tratá-lo adequadamente”, reforça a entidade.

Para o educador físico Gustavo Cardozo, esse cuidado é necessário, já que um choque na cabeça pode trazer sérias consequências para o atleta.

“Pode haver desde um acidente vascular cerebral (AVC) em campo até danos de longo prazo, como demência precoce e Parkinson”, afirma, em entrevista ao jornal O Globo.

“São lesões que podem gerar problemas no futuro. Mesmo que esteja bem, ele [atleta] precisa sair do jogo após uma concussão para ter a recuperação adequada”, acrescenta o ortopedista Fabiano Nunes, na mesma reportagem.

Protocolo da Fifa não é seguido em primeiro teste

O protocolo de concussão cerebral da Fifa se mostrou útil já na segunda partida do Mundial, dia 21 de novembro, entre Inglaterra e Irã. Aos 14 minutos do primeiro tempo, o goleiro iraniano Ali Beiranvand se chocou de cabeça com um colega de equipe, o zagueiro Majid Hosseini, e desmaiou.

Mas a determinação de tirar o atleta de campo não foi seguida, ao menos no primeiro instante. Após receber atendimento médico, Ali teve autorização para voltar ao jogo. Minutos depois, no entanto, caiu novamente e ele mesmo pediu a substituição.

Durante a partida, a permanência do goleiro iraniano em campo foi duramente criticada. No Twitter, a organização britânica Headway, especializada em lesões cerebrais, classificou a atitude como uma “total desgraça”.

“Irrelevante que ele [Ali] tenha saído um minuto depois – não deveria ter ficado um segundo, muito menos um minuto! Primeiro teste para o protocolo de concussão da Fifa – e primeira falha abjeta!”, diz o tuíte.

Efeitos tardios da concussão cerebral

Palavras semelhantes às do neurocientista Chris Nowinski, CEO da Concussion Legacy Foundation UK, que também trabalha com a prevenção de lesões cerebrais no esporte. Na mesma rede, ele chamou o episódio de “vergonhoso”.

“A Copa do Mundo teve um começo desastroso no gerenciamento de concussões. Dá um exemplo que coloca em risco dezenas de milhões de jovens jogadores globais”, lamenta.

Para o neurologista brasileiro Renato Anghinah, a lesão de Ali Beiranvand foi mal gerenciada. O goleiro, na avaliação do médico, deveria ter saído de campo logo após o choque.

“Existem os efeitos tardios da concussão, que podem ser depois que ele [atleta] para de jogar, mas também naquele momento em que está jogando. O jogador, quando toma a primeira pancada, já tem uma inflamação. Mas se toma uma segunda, pode ter um efeito explosivo desse inchaço, levando a uma lesão definitiva ou até incapacitante”, observa, em entrevista ao jornal O Globo.

Substituição imediata é decisão médica

Embora esteja mais associada a esportes como boxe, rúgbi/futebol americano e hóquei, a concussão cerebral também é bastante prevalente no futebol, garantem os médicos. A recomendação, diante do diagnóstico, é sempre a mesma: substituir imediatamente o atleta. Entre os sintomas mais comuns após um evento traumático, estão fadiga física, raciocínio lento, diminuição do tempo de reação, alteração da leitura de jogo e tontura.

Um caso recente de concussão cerebral no futebol brasileiro que repercutiu na imprensa e na Medicina Esportiva aconteceu na partida entre Fortaleza e Botafogo, pelo Brasileirão 2022. Após se chocar de cabeça com um adversário e cair em campo desacordado, o lateral-direito Rafael, do alvinegro carioca, se levantou e recusou deixar o gramado.

Entretanto, o médico do clube, Dr. Gustavo Dutra, não permitiu e insistiu com o técnico Luís Castro para que substituísse o atleta. A atitude foi elogiada pelo colega Luiz Mourão, médico do Santos. No Instagram, Dr. Mourão disse que a conduta “representou a Medicina Esportiva e mostrou a importância e o zelo que todos que trabalham com esporte precisam ter quando se depararem com uma situação dessas”.

“A decisão de não continuar em campo é respaldada pela ciência, e dentro da Medicina Esportiva não é diferente. É fundamental que o médico esteja seguro do diagnóstico para que a substituição seja realizada e a saúde do atleta seja preservada. Essa é a função do médico do esporte: proporcionar performance, mas sempre com saúde”, esclarece Dr. Mourão, em entrevista ao jornal O Liberal.

Retorno ao futebol tem sete etapas

Ainda de acordo com o médico do Santos, além do exame físico, o profissional deve fazer algumas perguntas ao atleta que sofre um trauma na cabeça. Por exemplo: “Em que local estamos hoje?”; “Quem marcou o último gol neste jogo?”; “Contra qual time você jogou na semana passada?”; “O seu time ganhou a última partida?”. Se o jogador responder incorretamente a alguma dessas questões, o médico vai sugerir o diagnóstico de concussão.

Nesse caso, segue-se a quinta edição da Declaração de Consenso sobre Concussão no Esporte (Scat5, na sigla em inglês).

“A orientação é a realização de exame de imagem de urgência – tomografia computadorizada ou ressonância magnética –, além de afastar totalmente o atleta do esporte e de atividades que exijam a função cognitiva – por exemplo, a leitura. Devemos seguir um protocolo que evolui em etapas até a liberação do atleta para retornar aos treinos e jogos”, detalha Dr. Mourão.

O tempo de recuperação varia de atleta para atleta, mas costuma durar de uma a duas semanas, segundo ele. O jogador que sofre uma concussão cerebral deve passar por sete fases de retorno ao futebol, a saber: repouso total até não apresentar sintomas; início da atividade física, com exercícios aeróbicos leves; exercícios de força; treino sem bola; treinamento com bola sem contato; treino com contato; e competição.

“A avaliação deve ser acompanhada diariamente pela equipe médica e, para passar de uma etapa para outra, tem que estar com 24 horas sem nenhum sintoma”, frisa o médico do esporte.

Estudo britânico comprova perigos da concussão cerebral

Entre as mulheres, o risco de concussão é quase duas vezes maior do que nos homens. A conclusão é do subcomitê de desenvolvimento de diretrizes da Academia Americana de Neurologia, a partir de uma revisão de estudos publicada em 2013. O trabalho aponta que, a cada mil jogos em competições do ensino médio nos Estados Unidos, há 0,59 caso de concussão entre garotos e 0,97 entre meninas. As razões para a diferença seriam fisiológicas.

Seja em homens ou mulheres, impactos repetitivos na cabeça podem causar doenças cerebrais degenerativas, de acordo com pesquisadores da Universidade Oxford Brookes, na Inglaterra, e de outras 12 instituições acadêmicas. Em estudo publicado em julho na revista Frontiers in Neurology, o grupo pede mais esforços de prevenção e mitigação da encefalopatia traumática crônica (ETC), especialmente em crianças.

A ETC é uma doença neurodegenerativa que provoca transtornos de comportamento como agressividade, depressão e falta de controle emocional. Além disso, ocasiona distúrbios cognitivos, a exemplo de perda de memória e demência.

“Os impactos repetitivos na cabeça e a ETC merecem reconhecimento na discussão global de saúde pública sobre distúrbios evitáveis causados pela exposição infantil a esportes de contato como futebol, rúgbi, hóquei no gelo e outros”, defende, em depoimento ao jornal britânico The Guardian, Adam White, professor sênior de Ciências do Esporte e Treinamento da Universidade Oxford Brookes e diretor-executivo da Concussion Legacy Foundation UK, que contribuiu com o estudo.

O Conselho da Associação Internacional de Futebol (Ifab, na sigla em inglês), que dita as regras do esporte, enviou às confederações nacionais, em agosto, uma recomendação para que jogadores de até 12 anos sejam proibidos de cabecear a bola durante treinos e partidas. De acordo com a revista Veja, a medida, que já havia sido aplicada de forma experimental em treinamentos e ligas infantis de Estados Unidos, Inglaterra e Argentina, entre outros países, agora deve ser seguida em todo o mundo.

O que outros países vêm fazendo

Em novembro, a Federação Escocesa de Futebol (SFA, em inglês) proibiu os jogadores de cabecear a bola no dia anterior e no dia seguinte às partidas. Treinos com a atividade ficaram restritos a uma vez por semana, a fim de “reduzir qualquer potencial efeito cumulativo do cabeceio”, segundo Dr. John MacLean, médico da SFA. A medida, conforme notícia do site The National, veio após um estudo da Universidade de Glasgow identificar que ex-jogadores de futebol têm três vezes e meia mais chances de morrer de doenças cerebrais.

Já na Austrália, um comitê parlamentar federal vai investigar concussão e traumatismo craniano repetitivo em esportes de contato e colisão. A decisão, noticiada no jornal The Guardian no início de dezembro, segue a crescente preocupação com casos de ETC associados a atividades esportivas.

No Brasil, estudo de 2019 da Universidade de São Paulo (USP) também revela que pancadas na cabeça de jogadores de futebol produzem sequelas, ainda que sutis. A mais grave delas é encefalopatia traumática crônica.

Na época, reportagem da revista Placar mostrou que o o jogador de futebol Hideraldo Luís Bellini – primeiro brasileiro a erguer a Taça Jules Rimet, em 1958 – foi vítima de concussão cerebral. Até a morte do zagueiro, em 2014, pensava-se que ele sofria de Alzheimer. Exames posteriores, no entanto, identificaram a ETC, fruto de choque com outras cabeças.

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